domingo, 1 de fevereiro de 2009

Excerto do livro "O Olhar e o Ver" lido na reunião "Bioética e Sentido da Vida"

PESSOA HUMANA, AUTONOMIA E RESPONSABILIDADE.
PROBLEMAS ÉTICOS NA ORIGEM DA VIDA*

A relação faz a pessoa, a pessoa faz a relação. (Qual o significado da relação na origem da vida?)

A questão ética que se pretende abordar é a de saber qual o grau de consciência, de liberdade e de responsabilidade de cada um dos múltiplos intervenientes num processo de nascimento, isto é, na origem de uma vida humana. Será, talvez, o mesmo que perguntar pelo agir pessoal de cada um dos intervenientes: o da mãe (e do pai), o do médico (e da sociedade), e, porque não, o do nascituro, mesmo quando dito embrião ou feto. Agem pessoalmente e com que grau ético?
Perguntar pelo significado da relação é saber quem é quem. Isto é, se mesmo o feto é pessoa e se age pessoalmente.
De um modo geral, é aceitável dizer que a autonomia (no ser e no agir) bem como a responsabilidade são duas características do "ser pessoal". Mas como o ser pessoal e o ser pessoa estão por definir, é preciso pôr-se a caminho a ver se chegamos a tal definição, podendo começar a reflexão, quer pelo lado da Antropologia (o lado do ser), quer pelo lado da Ética (o lado do agir). Como primeira aproximação, a verificar, tendo em conta essas características, dizemos que "pessoa é um sujeito autónomo de relação".

*. Comunicação ao Mestrado em Bioética 1999/2000 (Módulo VII: Problemas Éticos na Origem da Vida), da Fac. de Medicina da Univ. de Lisboa, realizada a 27 de Outubro de 2000.

Mas poderá mesmo falar-se de "ser autónomo" em relação a um feto ou a um nascituro? E que dizer da "autonomia" de uma mãe (e da sociedade que a envolve, médico, pai, etc.) em relação ao feto, e nas relações entre eles, numa situação que é sempre, e particularmente, intercondicionada?
Aliás, diga-se desde já, que também ninguém, por mais personalizado que esteja, satisfaz plenamente o conceito de pessoa!
Como método, separemos o Ser e o Agir, a autonomia e a responsabilidade. Que significado dão à relação?



O ser relacionável.

Antes de mais, haverá que distinguir "autonomia" de "auto-suficiência". O ser humano manifestamente não é auto-suficiente: em caso algum, ele se auto-basta. A palavra autonomia significa «com lei própria», e percebe-se como é possível ser autónomo sem ser auto-suficiente. A clarificação destes conceitos é um primeiro passo necessário. Nem a mãe nem o bebé são auto-suficientes.
Quanto ao conceito de "pessoa", ser pessoa, indica mais um horizonte de compreensão que uma realidade conseguida. Na verdade, como a história do pensamento mostra, esse termo só é aplicável directamente a compreensão do Deus cristão, paradoxalmente trino e uno, por contradistinção de Individualidade na unidade. Ao ser humano, "ser pessoa" aplica-se analogicamente. E foi a reflexão cristã sobre este tema que levou a filosofia a elaborar uma doutrina do ser pessoa, distinta do conceito de indivíduo, mostrando não ser contraditório falar de três pessoas que são um só Deus. E, por outro lado, essa reflexão foi avançando os conceitos de relação e interrelação como constitutivos do sujeito autónomo.
S. Tomás de Aquino sintetizando as tentativas de definição da filosofia que o precedeu deixou-nos esta tese que é bastante funcional mas insuficiente: ser pessoa, é “a natureza racional subsistente em si”. Para Cícero (séc. I a.C.), pessoa é o “sujeito de direitos e deveres” para Boécio (séc. VI) “substância individual de natureza racional”. Cada termo devia ser bem ponderado na cultura escolástica: desde logo a noção de “natureza” que não indica um estatuto mas um “devir” um processo dinâmico bem determinado. A verdade é que o mundo moderno sentiu a necessidade de abrir outros filões de reflexão para encontrar as notas características do “ser pessoa”. Assim, “o ser de consciência”, “o ser de liberdade”, “o ser relacional”. E poderíamos perguntar em que medida estas dimensões, psicológica, ética e social, dizem também respeito ao feto? Pretende-se que elas são os indicadores de todo o ser humano.
O cartesianismo recuperaria a velha noção do humano como “animal racional” dando prioridade à consciência (ao pensar) como característica definitória da pessoa. A linha kantiana, por seu lado sublinharia a liberdade e o imperativo ético. E o personalismo, e particularmente Martin Buber, traria a nota da relação ao outro e das inter-relações. Poderíamos ainda ir buscar a Heidegger a noção do homem como “ser de cuidado”. Estes elementos não se excluem, completam-se e não fecham o quadro.
Tudo isto nos faz dar conta da própria complexidade do ser humano e da impossibilidade prática de dar uma definição acabada do ser pessoa. Contudo, este mesmo caminho, a junção daqueles, indicadores (seja qual for o sublinhado), permitirá a tal definição “provisória” de pessoa como um “sujeito autónomo de relação”?
Seria: “uma subsistência individual de um suposto relacional”, “autónomo”, isto é, capaz (mesmo que ainda não ou já não) de agir responsavelmente, em nome próprio, mas não auto-suficiente nem independente, antes realizando-se (sendo cada vez mais quem é), na relação e pela relação.
Ou dito de outro modo: o poder ser um “eu” diante de um “tu”. Ser pessoa é poder “dizer” eu e referir-se a um tu, quer na linha horizontal de outros “eus”, manifestando assim a dimensão social da sua individualidade, quer na linha vertical da relação a um Tu absoluto (Deus e/ou Valor) – dimensão transcendente necessária para viver com sentido e fundamento de uma existência ética – isto é, co-responsável e capaz de hierarquizar valores.
Logo, a pessoa humana entende-se como uma capacidade, um processo e um dinamismo.

1 comentário:

Susana M. disse...

Quando a autonomia se torna autónoma / autista em relação aos outros princípios de bioética,apaga a essência de solidariedade do ser humano, abandonando-o ao vazio axiológico em que hoje muitos de nós sobrevivem. Parece-me muito pertinente a distinção entre autonomia e auto-suficiência, pois é precisamente a sinonímia enganosa que induz a indiferença e a invisibilidade nesta era de alta tecnologia e de identidade minimalista.